Literatura Patrística = Os Pais Apostólicos.
Rev. Hélio de Oliveira Silva, STM (1).
Os Pais Apostólicos foram escritores cristãos do fim do primeiro e início do segundo século (cerca de 95 a 150) e que podem ser considerados com justiça o primeiro eco do ensino dos apóstolos. Afinal, tiveram contato pessoal com os apóstolos ou com algum de seus discípulos. O termo foi empregado pela primeira vez em 1672 por J. B. Cotelier em sua obra de dois volumes Patres aevi apostolici (2).
Inicialmente o termo era aplicado a somente cinco obras: Epístola de Barnabé, Clemente de Roma, Inácio de Antioquia, Policarpo de Esmirna e o Pastor de Hermas. Posteriormente, Papias de Hierápolis e a Epístola a Diogneto foram incluídos. Recentemente foi incluída também a Didaquê.
Fica evidente que essa classificação não denota um grupo homogêneo de escritos. O Pastor de Hermas e a Epístola de Barnabé se assemelham na forma e conteúdo aos apócrifos do Novo Testamento. A Epístola a Diogneto, em função de seu propósito, pode ser colocada entre os escritos dos apologistas gregos. Enquanto que a Didaquê é um manual de regulamentações comunitárias, as cartas de Inácio refletem a solidariedade entre as Igrejas e co-responsabilidade do bispo local frente o cisma e as heresias (3). I Clemente é uma intervenção da igreja de Roma nos problemas locais da igreja de Corinto.
O caráter dos Pais Apostólicos é pastoral, seu conteúdo e estilo estão mais relacionados aos escritos do Novo Testamento, especialmente as epístolas (4). Para Quasten “eles podem ser considerados como a conexão entre o tempo da revelação e o tempo da tradição, e como as mais importantes testemunhas da fé cristã”(5) daquele período.
Seus autores viveram em partes diferentes do Império Romano como Ásia Menor, Síria e Roma, tendo escrito para suprirem necessidades específicas das igrejas em ocasiões especiais. O que é típico nesses escritos, Segundo Quasten, é seu caráter escatológico, apresentando a Segunda Vinda de Cristo como iminente (6). Por outro lado. A pessoa de Cristo recebe atenção especial lembrando-nos de sua relação íntima com os apóstolos. Eles não procuram ser uma exposição científica da doutrina cristã, ainda que seu relato cristológico seja uniforme e até mesmo apaixonado, como no caso de Inácio de Antioquia. Para eles Cristo é o Filho de Deus, preexistente, divino-humano e que participou da obra da criação do mundo.
Os Pais Apostólicos, portanto, marcam um período de transição e edificação da Igreja cristã.
Breve Análise Descritiva:
Clemente de Roma: I Epístola aos Coríntios (95-96).
Temas: Submissão aos presbíteros locais.
É o primeiro documento patrístico cujo autor e data aproximada de composição estão bem confirmados. Durante algum tempo esteve integrado ao cânon do NT em igrejas do Egito e Síria.
Irineu (Adv. Haer. III.3,3) e Eusébio (HE III.15,34) colocam Clemente como o terceiro sucessor de Pedro no bispado de Roma. A carta é uma intervenção da igreja de Roma na Igreja de Corinto buscando a conciliação interna da mesma (57.1). O problema fora deposição de presbíteros (44.6) devido a rebelião de alguns jovens (3.3) à sua autoridade. Clemente defende vigorosamente a estrutura hierárquica tradicional (1.1; 44.3-4; 47.4-7) utilizando-se do princípio da sucessão apostólica (44.1-3). Essa hierarquia é formada por presbíteros e diáconos (42.1-3; 44.5; 57.1). Um detalhe interessante é que a carta tem mais citações do AT do que qualquer outro livro do NT.
Além disso tem o seu valor histórico ao mencionar a estadia de Pedro em Roma, a ida de Paulo à Espanha (cap.1) e a perseguição de Nero (cap. 6). Tem lugar na história do dogma ao estabelecer, segundo Quasten “o manifesto da jurisdição eclesiástica” (42.1-3; 44.1-3)(7), a primeira defesa da sucessão apostólica e do primado de Roma, defendido pelos católicos. Demonstra a influência do estoicismo na filosofia cristã (cap. 20). No campo da liturgia pontua uma clara distinção entre clero e laicato (40.5; 41.1). contrasta episcopos com presbíteros (44.5 e 57.1 com 44.4). legou-nos uma belíssima oração litúrgica (59.4-61.3).
Segunda Epístola de Clemente aos Coríntios (c.150).
Temas: Sermão ou homilia não escrita por Clemente.
Essa carta contém um testemunho a favor da penitência “paenitentia secunda”, duas cartas às Virgens e as chamadas pseudoclementinas, todas datadas do terceiro século.
Inácio de Antioquia: Sete (7) cartas escritas às Igrejas de Éfeso, Magnésia, Trales (Trália), Roma, Filadélfia, Esmirna e a Policarpo (c. 107 a 113).
Temas dominantes: Combate a heresias (Docetismo e judaizantes), unidade da Igreja e martírio iminente do autor.
Eusébio ( História Eclesiástica - HE III.36) situa Inácio nos tempos de Trajano (98-117) como César romano, datando o seu martírio no décimo ano desse governo, ou seja, em 107. A tradição diz que ele foi levado da Síria (Antioquia) para Roma a fim de ser lançado às feras como mártir cristão. Irineu recorda seu martírio em (Adv. Haer. V.28,4). Suas cartas são exortações à unidade dentro da Igreja e a submissão ao bispo como referencial doutrinário das igrejas locais. Defende vigorosamente a fé cristã diante dos docetistas e judaizantes. Anseia pelo martírio como sinal de conformação a Cristo e testemunho cristão.
Inácio desconhece o papel dos profetas nas igrejas (presente na Didaquê) e defende o bispado monárquico como sinal da unidade da igreja. Inácio fala da eucaristia como “remédio de imortalidade” (Efésios 20.1,2) e como um veículo da nossa união real (Esmirna 7.1) com Cristo através de seu sangue (Filadélfia 4). Ela só podia ser celebrada pelo bispo ou por quem este designasse para fazê-lo, bem como o batismo (Esmirna 8.1). Para Inácio, “a unidade de Cristo com o Pai fundamenta a unidade do cristão com Cristo” (8), que é unido a Ele pela fé. O martírio é a perfeita imitação de Cristo (Romanos 4.1). É ele quem usa pela primeira vez os termos “eucaristia” para designar a ceia; e “igreja católica”, referindo-se à amplitude do alcance da Igreja no Império Romano e á sua unidade.
Segundo Quasten, o valor dessas cartas é a demonstração da vida interna nas igrejas do início do segundo século (9) e para a história do dogma na sua vigorosa defesa da divindade-humanidade de Cristo.
Policarpo: Epístola aos Filipenses (c. 110).
Temas: Exortações práticas.
Foi discípulo direto de João e quem discipulou a Irineu de Lião.
Participou do debate de 155 em Roma com respeito à data da comemoração da páscoa. Enfrentou pessoalmente a Márcion (Irineu = Adv. Haer. 3.3,4), proponente de uma espécie de gnosticismo cristão, chamando-o de “o primeiro nascido de Satan” (10). A epístola data provavelmente de 110 a 130 (11).
A Cristologia da carta de Policarpo é muito próxima à de I João, combatendo tanto o Gnosticismo como o Docetismo. Quanto ao governo da igreja testemunha que na Igreja de Filipos há um governo formado por um conjunto de presbíteros.
O objetivo da carta é dar informações sobre a estadia de Inácio com Policarpo e repassar as cartas de Inácio em poder de Policarpo à Igreja de Antioquia.
Martírio de Policarpo (c. 155): Enviado pela Igreja de Esmirna à igreja de Filomélio.
O texto nos transmite uma notável impressão da nobreza de caráter de Policarpo e como ele perseverou até o fim em sua fé.
Papias, Bispo de Hierápolis, na Frígia (+c. 130).
Temas: “Interpretações dos ditos do Senhor” (vida e palavras de Cristo, fragmentos em Eusébio e Irineu; trata da origem dos Evangelhos).
Segundo Irineu (Adv. Haer. V.33), ele foi amigo de Policarpo de Esmirna,
tendo chegado a ouvir a pregação do apóstolo João. Sua obra é uma Explicação dos Ditos do Senhor. Pouco se sabe de sua teologia, embora é evidente que manteve uma escatologia favorável ao milenarismo (12). Eusébio descreve-o como “um homem com pouca inteligência, como fica claro em seus livros” (HE III.39.3). Quasten acentua seu valor em preservar o ensino oral dos discípulos dos apóstolos (13).
Didaquê ou Ensino dos Doze Apóstolos (início do II século).
Temas: Manual de Instrução para a Igreja; ensino ético, problemas litúrgicos, profetas, oficiais e questões disciplinares.
O texto chegou até nós pelo códice Hierosolymitanus (H 54), copiado em
1056 e descoberto em Jerusalém e publicado pelo metropolita grego de Nicomédia Filoteo Bryennios em 1833. Segundo César Mazanares, há disputa quanto a datação. Entre 50-70 (Audet); 70-90 (Adam); 100-150 (Quasten) (14). Alguns chegaram a considerá-lo um escrito canônico.
A obra é dividida em 16 capítulos. 1-10 = Conteúdo litúrgico; 11-15 = disciplina eclesial. O cap. 16 trata da Segunda vinda de Cristo.
Descreve o batismo como sendo praticado por imersão, embora traga a primeira referência ao batismo por efusão, praticado em caso de necessidade. O batismo era limitado aos adultos e somente os batizados podiam participar da ceia.
A eucaristia (ceia), celebrada aos domingos e após a confissão de pecados era coletiva e litúrgica. Era considerada o sacrifício (Thysia) de Malaquias 1.10, se bem que essa afirmação não implicava um conteúdo sacrificial da celebração senão a crença de que o louvor e a oração substituíram todo tipo de sacrifício.
Não há qualquer menção a um episcopado monárquico, como em Inácio; os líderes são simplesmente chamados de bispos (supervisores) e diáconos (como em Fp 1.1). Há abundantes referências a profetas itinerantes. Daí a importância da escatologia, que acentua a aparição dos falsos profetas e do anticristo como sinais antecessores da segunda vinda de Cristo (parusia).
Epístola de Barnabé (c. 130).
Temas: O autor era um cristão de Alexandria. Trata da suficiência de Cristo X a Lei de Moisés. Contém muita tipologia e alegoria.
Essa obra gozou de enorme fama, ao ponto de Orígenes considerá-la canônica. É possível que tenha sido escrita por um judeu-cristão, talvez de Alexandria, sendo carregada de helenismos. É um tratado teológico anti-judaico apresentado artificialmente na forma de carta (1.1; 21.9).
Divide-se em duas seções claras, dedicadas a aspectos teológicos (1-17 = o valor e sentido da revelação no AT) e práticos (18-21). Defende a preexistência de Cristo face à heresia dos ebionitas (15). Liga a adoção como filhos de Deus ao batismo. Os cristãos devem guardar o Domingo e não o Sábado (XV.8,9). Sua escatologia é milenarista (XV.1-9).Contém o primeiro texto cristão contra o aborto (XIX.5).
Segundo o Dr. Ronaldo Cavalcante, a Epístola a Barnabé “é uma tentativa de superação das instituições de Israel na nova economia salvífica. Faz parte de uma corrente ideológica cristã que não sabe o que fazer com o AT e que culminou, em meados do séc. II, com a ruptura herética de Márcion” (16).
Pastor, de Hermas (c. 150).
Temas: Baseado no Apocalipse. Seu objetivo é moral e prático. Ênfases: Arrependimento e vida de santidade.
Quasten prefere considerá-lo como um apocalipse apócrifo, mais que um
Pai Apostólico (17). O autor era provavelmente um judeu convertido ao cristianismo e de uma vida familiar desajustada. O conteúdo da obra são várias visões experimentadas por Hermas em Roma. Irineu (Adv. Haer. IV.20), Tertuliano, Orígenes e Eusébio (HE V.8) consideravam-no inspirado (18).
A obra é divida em três partes: 5 visões; os 12 preceitos e as 10 parábolas, que tratam de problemas práticos da vida da Igreja, mais do que de sutilezas doutrinárias. É mais didático que profético. Hermas crê que o batismo é indispensável para a salvação. Crê na trindade, embora identifica o Espírito Santo com Cristo. Crê na Igreja como “a primeira das criaturas já que por ela foi criado o mundo”. A igreja é tanto um ideal a ser alcançado quanto composta de pecadores. Sua principal doutrina é a do arrependimento penitencial (20).
Epístola a Diogneto (c. 200).
Temas: Autor anônimo; destinada ao tutor de Marco Aurélio (?). Possui caráter apologético (uma defesa racional do Cristianismo).
Seu estilo é marcantemente o de uma apologia. O autor e os destinatários
são-nos igualmente desconhecidos. Provavelmente foi escrita de Alexandria (21). O texto que temos da epístola é de Justino. A obra descreve o cristianismo como superior ao paganismo e ao judaísmo, aponta a origem divina do cristianismo e convida Diogneto à conversão.
Uma Avaliação Crítica dos Pais Apostólicos:
Não é difícil perceber a mudança quando estudamos os escritos do NT em comparação com os Pais Apostólicos; não há o mesmo frescor de originalidade, profundidade e clareza. Berkhof(22) concorda com Quasten que este tempo é um tempo de transição da época da revelação e inspiração infalíveis para um tempo de pioneiros, porém falíveis. Eles escoram pesadamente sobre as Escrituras, sem contudo, ultrapassarem os aspectos elementares da fé cristã.
Berkhof alista duas características desses escritos para a elaboração de sua crítica(23):
(1) Pobreza de estilo e conteúdo.
(2) Falta de precisão.
Isso porque para os primeiros pais, o cristianismo não era uma doutrina a aprender e adquirir, mas um princípio de uma nova obediência ao Senhor por meio de Cristo.
Apesar disso, é preciso reconhecer a dimensão dos problemas que eles enfrentavam, antes de avaliarmos suas fraquezas e desvios doutrinários.
1. O Cânon não estava ainda plenamente organizado, sendo inclusive difícil ter o conjunto de todas as cópias dos manuscritos bíblicos. Ainda no tempo de João Crisóstomo (final do Séc. IV) era complicado adquirir textos bíblicos para a leitura doméstica, quanto mais no início do segundo século! Inácio é pobre de citações diretas, ao passo que Clemente cita as escrituras mais do que qualquer livro do Novo Testamento.
2. O perigo das heresias que se difundiam rapidamente por meio de falsos irmãos e pregadores itinerantes despreparados. A Didaquê se dedica a instruções sobre o tratamento desses obreiros itinerantes, alertando para o perigo de aproveitadores.
3. A falta de estrutura definida nas Igrejas. A unidade era sustentada na figura do bispo monárquico, que nem sempre estava livre das influências da filosofia grega pagã, como é o caso de Clemente de Roma, onde se percebe a influência do Estoicismo.
4. As perseguições que não permitiam o desenvolvimento teológico, que só foi possível nos séculos IV e V, com o fim das mesmas. A igreja lutava para sobreviver e se defender. Inácio, Justino e Irineu, além de tantos outros, tiveram suas vidas ceifadas pelo martírio provindo das perseguições.
Mesmo assim, é possível observar a origem, o desenvolvimento e a interpretação deles das práticas doutrinárias, litúrgicas e eclesiásticas comuns na vida da Igreja pós apostólica. Eles nos ajudam a entender a transição da Igreja apostólica do primeiro século para a Igreja católica antiga do final do segundo século(24).
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(1) O autor é Bacharel em Teologia pelo SPBC-Goiânia-GO (1990). Mestre em Teologia Histórica pelo Centro de Pós-Graduação Andrew Jumper-São Paulo-SP (2004). Pastor auxiliar da 1ª Igreja Presbiteriana de Goiânia desde 2002. É professor no SPBC desde 1999, onde leciona dentre outras matérias, História do Pensamento Cristão, História da Igreja Presbiteriana do Brasil e História das Missões Cristãs.
(2) Johannes Quasten, Patrology, p. 40.
(3) Ronaldo Cavalcante, Literatura Patrística, SPBC, 2001. Trabalho não publicado,
p.3.
(4) Ibid.
(5) Johannes Quasten, Patrology, p. 40.
(6) Ibid.
(7) Ibid, p. 44.
(8) Ronaldo Cavalcante, Literatura Patrística, SPBC, 2001. Trabalho não publicado,
p.7.
(9) Johannes Quasten, Patrology, p. 64.
(10)Ibid. p. 77.
(11)César Vidal Manazares, “Policarpo de Esmirna”, Dicionário de Patrística, p.178.
(12)Manzanares, “Papias de Hierápolis”, Dicionário de Patrística, p.78
(13)Johannes Quasten, Patrology, p. 82.
(14)Manzanares, “Didaqué”, Dicionário de Patrística, p.78.
(15)Manzanares, “Epístola de Barnabé”, Dicionário de Patrística, p.92.
(16)Ronaldo Cavalcante, Literatura Patrística, SPBC, 2001. Trabalho não publicado,
p.6.
(17)Manzanares, “Pastor de Hermas”, Dicionário de Patrística, p.171. (Cf.: Johannes
Quasten, Patrology, p. 92).
(18)Ibid. p.172.
(19)Ibid.
(20)Ronaldo Cavalcante, Literatura Patrística, SPBC, 2001. Trabalho não publicado,
p.8.
(21)Franco Pierini, A Idade Antiga, Curso de História da Igreja I, p.79.
(22)Louis Berkhof, A História das Doutrinas Cristãs, p. 38.
(23)Ibid. p.38,39.
(24)Tony Lane, Pensamento Cristão vol. I, (São Paulo: Abba Press, 1999), 15.