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O Cânon das Escrituras

Foto: O Manuscrito Sinaítico.

O CÂNON DAS ESCRITURAS

Introdução:

O termo cânon é de origem semítica (hebraico; “qãneh” – instrumento de medir; grego; kanõn – vara reta, régua). Depois passou a ser usado no sentido metafórico de “regra de ação”. O uso bíblico tem a ver com o grupo de livros que se conformam com a regra ou padrão da inspiração e autoridades divinas.
O primeiro uso do termo como uma lista normativa dos livros da Bíblia foi por Atanásio de Alexandria em 367.
Ao estabelecer o Cânon do Novo Testamento, a Igreja afirmou ao mesmo tempo a sua conexão com o judaísmo, que já tinham o Antigo Testamento e seu rompimento com eles, reivindicando a complementação do Antigo Testamento pelo Novo Testamento [1].

I) A Necessidade de um Cânon:

A Igreja precisava estabelecer seus padrões de culto, modelos de orações, liturgias e sermões. O Cânon supriria a Igreja de material para as devoções públicas e particulares dos cristãos, bem como o padrão teológico para resolver suas disputas internas (polêmicas e heresias) e externas (apologética) e um texto fixo para a obra missionária a outras línguas.
Os judeus haviam ratificado a lista oficial dos livros do Antigo Testamento em Jâmnia (90-100 a.C.), sendo natural que a Igreja cristã primitiva se apropriasse dela. Por outro lado, mesmo que as epístolas paulinas e os Evangelhos já fizessem parte de uma coleção única por volta do ano 100, o processo de formação do Cânon do NT duraria mais de dois séculos.
O Antigo Testamento usado pela Igreja nos dois primeiros séculos de sua história era a Septuaginta (LXX), que incluía alguns livros apócrifos do Antigo Testamento. Citações de sabedoria aparecem em I Clemente (3.4; 27.5) e Barnabé cita além da Sabedoria (6.7), II Esdras e Eclesiástico (12.1; 19.9). Policarpo cita Tobias (10.2). A Didaqué cita o Eclesiástico (4.5). Ireneu refere-se à Sabedoria, Susana, Bel e o Dragão e Baruque (Ad. Haer.IV.26.3; IV.38.3; V.5.2; V.35.1 e Demonstração 97)[2]. O uso dos apócrifos por Tertuliano, Hipólito, Cipriano e clemente de Alexandria é extenso e freqüente que dispensa qualquer citação. Quando os judeus demonstraram relutância quanto aos livros apócrifos é que a Igreja passou a tratar da questão com mais atenção. Melito de Sardes (170), após uma visita à Palestina, convenceu-se de que o cânon hebraico era o único autorizado [3] .
No quarto século, no oriente, os grandes líderes da escola de Alexandria (Atanásio, Cirilo de Jerusalém, Gregório de Nazianzo e Epifânio) ensinavam que os livros apócrifos deveriam ser colocados numa posição secundária frente aos livros canônicos. Cirilo não permitia nem a sua leitura particular, enquanto que Atanásio achava sua leitura útil aos catecúmenos [4]. Por outro lado, membros da escola de Antioquia, como Crisóstomo e Teodoreto não partilhavam de tais preocupações; mesmo os que eram contrários ao reconhecimento dos apócrifos citavam-nos amplamente noutras ocasiões, fora do debate. Já o ocidente, sempre mostrou-se mais favorável aos mesmos (Hilário e Rufino), porém, esse não era o caso de Jerônimo, que julgava inflexívelmente que todos os que não eram encontrados no cânon hebraico, não deveriam ser reconhecidos [5].

O Dr. J. B. Tidwell [6] alista três razões principais para a formação do
Cânon bíblico:
1ª) Preservar os escritos sagrados da corrupção.
Com a morte dos profetas e dos apóstolos, a inspiração havia cessado, tornando necessária a reunião de seus escritos para preservar sua mensagem evitar alterações nas mesmas. As heresias desempenharam um papel importante na formação do Cânon. Foi Márcion , o herege gnóstico, quem propôs a primeira lista de livros sacros por volta de 144. Márcion tinha uma versão corrigida de Lucas (foram retiradas todas as referências ao Antigo Testamento) e dez cartas de Paulo. O surgimento do Montanismo, que acreditava ser “uma nova efusão do Paráclito” [7], que suplementava as Escrituras, caminhava nessa mesma direção.
2ª) Evitar a adição de outros livros.
Levantou-se a questão de qual era a extensão ou o alcance da inspiração, pois haviam outros livros reivindicando a inspiração (apócrifos e pseudoepígrafos).
3ª) Prevenir contra as tentativas de destruir a Bíblia.
Antíoco Epifânio (c. 150 a.C.) instaurou a pena de morte para quem fosse encontrado com livros judaicos sagrados, e os mesmos deveriam ser queimados. Quando Deocleciano (302 d.C) mandou queimar os livros sacros, surgiu a dúvida de quais livros seriam estes.

Duas perguntas se levantaram à Igreja com respeito à formação do Cânon:
1ª) O que é que torna um livro canônico?
2ª) Quando aconteceu o reconhecimento dessa canonicidade pelo
povo de Deus?

II) Referências Históricas Quanto à Formação do Cânon:

1)Eclesiástico: o prólogo de Jesus Ben Siraque datado de 130 a.C.
“Pela Lei, pelos Profetas e por outros escritores que os sucederam... após entregar-se particularmente ao estudo atento da Lei, dos Profetas e dos outros Escritos...”

2) 1 Macabeus ( 2.59,60/ 7.17): Datado em c. de 130 a.C., cita Daniel e
Salmos como Canônicos.

3) Josefo de Jerusalém (37-95 d.C): Contra Apionem 1.8:
Não temos dezenas de milhares de livros, em desarmonia e conflitos, mas só vinte e dois, contendo o registro de toda a história que, como se crê com justiça, são divinos... 5 de Moisés, 13 profetas e os demais livros ... que abrangem hinos a Deus e conselhos pelos quais os homens podem pautar suas vidas... Desde Artaxerxes (sucessor de Xerxes) até nossos dias, tudo tem sido registrado, mas não tem sido considerado digno de tanto crédito quanto aquilo que precedeu a esta época, sendo que a exata sucessão dos Profetas cessou. Mas a fé que depositamos em nossos próprios escritos é percebida através de nossa conduta; pois apesar de Ter-se passado tanto tempo, ninguém jamais ousou acrescentar coisa alguma a eles, nem tirar deles coisa alguma, nem alterar neles qualquer coisa que seja.
Três observações são necessárias quanto ao afirmado por Josefo:
a) Josefo segue as três divisões das Escrituras Hebraicas.
b) Nenhum escrito canônico foi composto depois de Artaxerxes (464-424 a.C.), rejeitando, portanto, os apócrifos.
c) Nenhuma matéria nova foi incluída no Cânon desde essa época.
4) Lucas 24.44: Refere-se ao Antigo Testamento pela expressão “a Lei de Moisés, os
Profetas e os Salmos”. Salmos, Provérbios, Daniel e Lamentações são citados claramente como Escrituras ao lado da Torá.

5) II Pedro 3.16: refere-se aos escritos de Paulo como Escrituras.

6) Inácio de Antioquia (107): O Evangelho tem a mesma autoridade dos profetas do Antigo Testameno (Esmirna 5.1,2; 7.2). “seguir os profetas, especialmente o evangelho”(Esm. 7.2). sua única citação nominal do Novo Testamento é da epístola de Paulo aos Efésios (Ef 12.2).

7) Bispo Melito de Sardes (170 d.C.): Declarou em seus Extratos, ter
viajado para o Oriente para averiguar o número dos livros do Antigo Testamento (HE IV.26.12-14) e publicou uma lista bem próxima do Texto Massorético do AT, omitindo Ester e coloca Sabedoria (que pode ser Provérbios ou Sabedoria de Salomão).

8) Ireneu (180) [8] – Contra as Heresias III.11.8: Foi o primeiro a estabelecer uma relação intrínseca entre o Antigo Testamento e o Novo Testamento. Defendeu a existência de apenas quatro Evangelhos da seguinte forma:
Por outro lado, os evangelhos não são, nem mais nem menos, do que estes quatro. Com efeito, são quatro as regiões do mundo em que vivemos, quatro são os ventos principais, e visto que a igreja é espalhada por toda aterra, e como tem por fundamento e coluna o Evangelho e o Espírito da vida, assim são quatro as colunas que espalham por toda a parte a incorruptibilidade e dão vida aos homens.
Ireneu faz nada menos que 206 citações das epístolas de Paulo [9].

9) O Cânon Muratoriano [CM] (200): Descoberto em 1740, em Roma pelo bispo Ludovico Antonio Muratori. Segundo Mark Noll [10],
Embora a linguagem do Cânon Muratoriano nem sempre seja inteiramente clara, as interpretações usuais do mesmo apontam para uma série de categorias que revelam continuidade e descontinuidade com o Novo Testamento posterior.
 Livros presentes no Novo Testamento e no CM na ordem em que aparecem: Os 4 Evangelhos, Atos, I e II Coríntios, Efésios, Filipenses, Colossenses, Gálatas, I e II Tessalonicenses, Romanos, Filemon, Tito, I e II Timóteo, Judas, I, II e III João e o Apocalipse.
 Livros do CM ausentes no Novo Testamento na ordem: Sabedoria de Salomão, Apocalipse de Pedro, Cartas de Paulo aos Laodicenses e Alexandria (forjadas em seu nome a fim de combater os ensinos de Márcion).
 Livros do Novo Testamento não mencionados no CM: I e II Pedro, Hebreus e Tiago.
 Outros livros discutidos no CM: Livros que deviam ser lidos, mas não incluídos entre os canônicos: o Pastor de Hermas.
O documento é interrompido quando começa a tratar dos salmos compostos pelos discipulos de Márcion.

10) Orígenes (+ 254 d.C.): Deixou um catálogo de 22 livros do Antigo Testamento preservado na História Eclesiástica [HE] de Eusébio de Cesaréia (HE VI.25.2) [11]. Ele acrescenta a Epístola de Jeremias e menciona I e II Macabeus. Quanto ao NT, refere-se às cartas de Paulo como não endereçadas a todas as igrejas e sendo cartas de “de umas poucas linhas” (HE VI.25.7). Com respeito às cartas de Pedro, declara: “Deixou só uma carta por todos reconhecida. Talvez uma Segunda, pois é posta em dúvida” (HE VI.25.8). Sobre II e III João afirma: “Nem todos dizem que estas são genuínas” (HE VI.25.10). Ele fez amplo uso dos apócrifos, mas preferia que no debate com os judeus fossem usados apenas os livros por eles reconhecidos (Ep. Ad. Afric. 4s) [12].

11) Tertuliano(160-250): declara serem 24 os livros canônicos do AT. Defendeu os Evangelhos e Atos contra os ataques de Márcion, bem como as treze epístolas de Paulo.

12) Jerônimo (340-420): O grande tradutor da Vulgata Latina reconheceu
em seu Prólogo Galeatus [13] apenas 22 livros canônicos, mesmo traduzindo os apócrifos:
Tudo quanto é separado destes deve ser colocado entre os Apócrifos... E assim, da mesma maneira pela qual a Igreja lê Judite, Tobias e Macabeus, mas não os recebe entre as Escrituras canônicas, assim também sejam estes dois (Eclesiástico e Sabedoria) livros úteis para a edificação do povo, mas não para estabelecer as doutrinas da Igreja.

Por volta do final do IV século, as listas de escritos do Nov Testamento com os 27 livros já são completas e padronizadas, como na carta pascal de Atanásio (367), e no documento do Sínodo de Cartago, realizado em 397.

Conclusão:

Segundo Mark Noll [14] , a chave de todo o processo da formação e pleno reconhecimento do Cânon foi a apostolicidade, isto é, se o livro havia sido escrito diretamente por um dos discípulos de Cristo ou por alguém ligado diretamente a eles. Outro fator era se o escrito expressava de forma pura os ensinamentos dos apóstolos acerca de Jesus Cristo.
Além disso é preciso reconhecer que esse processo, muitas vezes intricado e complexo, foi gradual, permitindo que alguns livros estivessem na iminência de serem incluídos por muito tempo ainda, tais como o Pastor de Hermas, a Didaqué e o Apocalipse de Pedro [15]. Outros livros, incluídos somente mais tarde, tiveram de aguardar um tempo considerável para o seu reconhecimento, como foi o caso de Hebreus, Apocalipse, II Pedro, II e III João e Judas, ausentes em todas as listas mais antigas.
A fixação do Cânon foi um passo extraordinário e importante para a estabilização da vida da Igreja como testemunha das obras de Jesus Cristo na sua caminhada na terra.

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Notas:
[1] Mark Noll. Momentos Decisivos na História da Igreja, ECC, p. 37.
[2] Ad Haer. = Adversus Haeresis - Contra as Heresias, de Iireneu de Lião.
[3] J. N. D. Kelly. Doutrinas Centris da Fé Cristã; Vida Nova, p. 39.
[4] Ibid, p. 40.
[5] Ibid.
[6] J. B. Tidwell. Visão Panorâmica da Bíblia, Vida Nova, p. 28.
[7] J. N. D. Kelly. Doutrinas Centrais, p. 43.
[8] Ireneu de Lião. Contra as Heresias. Coleção Patrística vol. 4, Paulus, p. 285.
[9] J. N. D. Kelly. Doutrinas Centrais da Fé Cristã, p. 43.
[10] Mark Noll. Momentos Decisivos, p. 39,40.
[11] Eusébio de Cesaréia. História Eclesiástica, Novo Século, p. 213-215.
[12]J. N. D. Kelly. Doutrinas Centrais, p. 40.
[13] Citado por Gleason Archer Jr. Merece Confiança o Antigo testamento? Vida
Nova, p. 75 nota 5.
[14]Mark Noll. Momentos Decisivos, p. 41. J. N. D. Kelly Doutrinas Centrais, p. 44.
[15] J. N. D. Kelly. Doutrinas Centrais, p. 44.

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