O Martírio
de Blandina
Rev. Helio O. Silva
Em 161, tornou-se imperador romano Marco Aurélio, um
homem culto e refinado, dotado de um espírito diferente de Nero e Domiciano
quanto à fome por poder, também foi cruel perseguidor da Igreja. Ele considerava
a fé cristã pura teimosia, não racionalidade,[1]
apesar de ser ele próprio, muito supersticioso.
O início de seu reinado foi marcado por invasões, inundações
e epidemias, o que foi rapidamente creditado aos cristãos, que haviam atraído
sobre o Império a ira dos deuses.
Os martírios ocorridos em seu reinado são bem
documentados e detalhados. Os mais conhecidos são os de Justino, Mártir, em
Roma (165 d. C.) e dos mártires de Lion e Viena, na Gália francesa (177 d. C.).
O início da perseguição limitava-se a proibições de
frequentar lugares públicos, depois os cristãos passaram a ser seguidos pelas
ruas com injúrias, agressões e apedrejamentos, por fim, vários cristãos foram
presos e levados perante o governador.
Um advogado chamado Vécio Epágado se ofereceu para defendê-los, mas por
se declarar cristão ao governador no momento do julgamento, foi preso junto com
eles.
Dentre os vários cristãos presos e condenados à morte
em Lion, estava uma escrava, de aparência frágil, por quem temiam os seus
irmãos na fé, chamada Blandina. Na hora da tortura, ele se mostrou tão
resistente e persistente na sua fé, que os verdugos tiveram que revezar nas
torturas.
Abaixo transcrevo partes do depoimento de Eusébio de
Cesaréia, escrito em sua História Eclesiástica, como citação de uma
carta enviada pela igreja de Lion às igrejas da Frígia e Ásia Menor.
16. ... Desde então os
santos mártires suportaram castigos que excedem a toda descrição, enquanto
Satanás se esforçava para arrancar-lhes também alguma palavra blasfema.
17. Toda
a fúria da multidão, do governador e dos soldados abateu-se transbordante sobre
o diácono Santos, de Viena, sobre Maturo, recém-batizado mas nobre lutador,
sobre Atalo, oriundo de Pérgamo e que sempre havia sido coluna e fundamento dos
cristãos daqui, e sobre Blandina, por meio da qual Cristo demonstrou que
o que entre os homens parece vulgar, disforme e facilmente desprezável, por
parte de Deus é considerado digno de grande glória devido ao amor a Ele, amor
que se mostra na força e que não se vangloria da aparência.
18. Efetivamente,
enquanto todos nós estávamos temerosos e sua própria senhora segundo a carne -
também ela uma de nossos mártires combatentes -temíamos que por fraqueza de seu
corpo não tivesse forças para proclamar livremente sua confissão, Blandina viu-se
cheia de uma força tão grande que extenuava e esgotava aqueles que, em turnos e
de todas as maneiras, torturavam-na desde o amanhecer até o ocaso; eles mesmos
confessavam que estavam vencidos, sem nada poder fazer com ela, e se admiravam
de como podia manter-se com alento estando todo seu corpo dilacerado e aberto,
e atestavam que um só tipo de suplício bastaria para tirar a vida, sem
neces-sidade de tantos e tão terríveis.
19. Mas
a bem-aventurada mulher, como nobre atleta, rejuvenescia na confissão, e para
ela era recuperação de forças, descanso e ausência de dor em meio aos
acontecimentos o dizer: "Sou cristã, e nada de mal é feito entre
nós!"
37.
...Assim pois, Maturo e Santos, assim como Blandina e Atalo, foram
conduzidos às feras, ao local público e para espetáculo comum da inumanidade
dos pagãos, pois o dia de luta de feras deu-se precisamente por causa dos
nossos.
38. No anfiteatro,
Maturo e Santos passaram novamente por todo tipo de tormentos como se antes não
tivessem padecido absolutamente nada, ou melhor, como atletas que já venceram
os adversários em muitos combates e que seguem lutando pela mesma coroa. De
novo sofreram as passadas dos chicotes que ali eram de costume, os puxões das
feras e tudo o que o povo enlouquecido, cada qual de seu lugar, gritava e
ordenava. E como arremate de tudo, a cadeira de ferro, de onde os corpos, ao
serem assados, lançavam ao público um odor de carne queimada.
39. Mas estes, nem com
tudo isto recuavam, mas até aumentava-se-lhes o frenesi querendo vencer a
constância daqueles. Mas nem assim conseguiram ouvir de Santos outra coisa além
da frase de confissão que desde o começo costumava repetir.
40. Assim pois, os
mártires, que depois de atravessar o grande combate seguiam com muita vida
foram por fim sacrificados325, convertidos naquele dia em espetáculo para o
mundo em substituição à variada série de combates de gladiadores.
41. Blandina, por outro
lado, foi pendurada num madeiro e ficou exposta às feras, que se lançavam sobre
ela. Apenas por vê-la pendendo em forma de cruz e com sua oração contínua,
infundia-se muito ânimo aos outros combatentes, que neste combate viam com seus
olhos corpóreos, através de sua irmã, aquele que por eles próprios havia sido
crucificado. E assim ela persuadia aos que crêem n'Ele de que todo aquele que
padece pela glória de Cristo entra em comunhão perpétua com o Deus vivo.
42. Por
não ter sido tocada então por nenhuma fera, desceram-na do madeiro e de novo
levaram-na ao cárcere, guardando-a para outro combate; assim, depois de vencer
em mais lutas, por um lado tornaria implacável a condenação da serpente
tortuosa326, e por outro animaria seus irmãos; ela. Pequena, frágil e
desprezada, mas revestida do grande e invencível atleta, Cristo, bateria o
adversário em sucessivos combates, e pelo combate seria cingida com a coroa da
incorruptibilidade.
53. ... Depois de tudo
isto, no último dia de lutas de gladiadores, levaram novamente Blandina
junto com Pôntico, rapaz de uns quinze anos. Cada dia tinham sido apresentados
para que vissem as torturas dos outros. Começaram obrigando-os a jurar pelos
ídolos dos pagãos; mas como eles permaneciam firmes e até os menosprezaram, a
multidão ficou enfurecida contra eles ao ponto de não ter pena da idade do
rapaz nem respeito pelo sexo feminino.
54. Entregaram-nos a
todos os horrores e fizeram-nos percorrer todo o ciclo de torturas, uma após a
outra, tentando forçá-los a jurar, sem que o conseguissem. Efetivamente,
Pôntico, animado por sua irmã tanto que até os pagãos podiam ver que era ela
que o exortava e confortava, depois de sofrer generosamente todo tipo de
tormentos, entregou o espírito.
55. E a bem-aventurada Blandina,
a última de todos, como nobre mãe que infundiu ânimo a seus filhos e os enviou
adiante vitoriosos para seu rei, depois de percorrer também ela todos os
combates de seus filhos, voava para eles alegre e prazerosa da partida, como se
fosse convidada a um banquete de bodas e não lançada às feras.
56. Depois dos açoites,
depois da feras e depois das chamas, por último atiraram-na a um touro. Lançada
ao alto longo tempo pelo animal, insensível já ao que lhe acontecia por sua
esperança mantida em tudo o que havia crido e por sua conversação com Cristo,
também ela foi sacrificada, enquanto os próprios pagãos confessavam que jamais
entre eles uma mulher havia padecido tantos e tais suplícios.
57. Mas nem assim
fartou-se sua loucura e crueldade para com os santos, porque, incitada por uma
fera selvagem, aquela tribo selvagem e bárbara não podia calar-se facilmente.
Sua cruel insolência tomou outro rumo particular: fartar-se nos cadáveres.
58. De
fato, não lhes causava a menor vergonha terem sido vencidos, já que não
raciocinavam como homens, mas inflamava-se ainda mais sua cólera, como a de uma
fera, e assim, tanto o governador como a plebe demonstravam ter o mesmo ódio
injusto contra nós, para que se cumprisse a Escritura: que o injusto continue
em sua injustiça, e que o justo continue sendo justificado334.
59. Efetivamente,
os que haviam perecido asfixiados no cárcere eram lançados aos cães, sendo
vigiados noite e dia para evitar que algum dos nossos lhes fizesse as honras
fúnebres. Também então expuseram os restos deixados pelas feras e pelo fogo, em
parte despedaçados e em parte carbonizados, e durante alguns dias seguidos
custodiaram com guarda militar as cabeças dos outros, junto com seus troncos,
assim mesmo insepultos.
60. E
sobre estes restos alguns resmungavam e rangiam os dentes, buscando tomar deles
alguma vingança suplementar; outros riam-se e zombavam, ao mesmo tempo que
engrandeciam seus ídolos, a quem atribuíam o castigos daqueles, e os mais
moderados e que pareciam compadecer-se um pouco repetiam insultos dizendo:
"Onde está seu Deus e de que lhes valeu sua religião, a qual preferiram
inclusive a sua própria vida?"
61. Assim variada era a
atitude daqueles; nós, por outro lado, afundávamos em grande dor porque não
podíamos enterrar os corpos, já que nem a noite nos ajudava nisto, nem o
dinheiro conseguia persuadir nem as súplicas abrandar, mas por todos os meios
os custodiavam, como se no fato de que os corpos não receberem sepultura eles
tivessem grande vantagem."
62. Em continuação a
isto, depois de algumas outras coisas, dizem: "Assim pois, os corpos dos
mártires, depois de serem expostos ao escárnio de todos os modos possíveis e de
ficarem às intempéries durante seis dias, foram logo queimados e reduzidos a
cinzas, que aqueles ímpios lançaram ao rio Ródano, que passa perto dali, para
que nem sequer suas relíquias ficassem ainda visíveis sobre a terra.
63. E faziam isto
pensando que poderiam vencer Deus e arrebatar daqueles seu novo nascimento, com
a finalidade de que, como eles diziam, "nem sequer esperança tenham de
ressurreição; persuadidos dela, estão introduzindo uma religião estranha e
nova, desprezam os tormentos e vêm dispostos e alegres à morte: vejamos agora se
vão ressuscitar e se seu Deus pode socorrê-los. (Eusébio de Cesaréia - História
Eclesiástica, Livro V Capítulo 1, Fonte Editorial, p. 154-161).
A história de Blandina,
martirizada em Lion em 177 d. C., por amor a Cristo é um dos testemunhos
cristãos mais tocantes da história do mundo. Mulher, escrava, franzina. No
entanto não negou a Cristo e foi cruelmente torturada por dias, pendurada numa
cruz para assistir a morte de outros cristãos, mordida por feras, apresentada a
um touro que a chifrou e lançou ao ar várias vezes, forçada a sentar-se numa
cadeira de ferro aquecida no fogo, até ser degolada pela espada de um soldado.
Seu corpo, junto com os de outros mártires ficaram expostos no anfiteatro por
mais sete dias, depois queimada e lançada suas cinzas no rio Ródano.
É impossível ler esses
relatos históricos e não ser tocado profundamente! O mundo odeia a Cristo e
odiará todo aquele e aquela que não negá-lo pela comodidade de seus favores.
Testemunhos como o seu, não podem cair no esquecimento da Igreja, e nem da
história.