Rev. Dyeenmes Procópio de Carvalho
Introdução
Num artigo intitulado “What! Me? A Sinner?” [Como? Eu?
Pecador?], há uma interessante a alarmante constatação:
“Na Inglaterra do século XX, C. S. Lewis explicou: ‘A
barreira que mais encontro é a falta quase total de algum senso de pecado em
meus ouvintes’. Em 2001, D. A. Carson, estudioso do Novo Testamento, afirmou
que o aspecto mais frustrante de pregar o evangelho em universidades é o fato
de, no geral, os alunos não terem noção de pecado. ‘Eles sabem pecar muito bem, mas não conhecem a natureza do pecado’”.
Essas afirmações simplesmente confirmam o que parece
óbvio a muitos observadores: a noção geral de pecado quase desapareceu da
sociedade. Vemos, então que o conceito integral de pecado praticamente sumiu da
sociedade em geral, e tem sido abrandado em muitas igrejas para não ferir a
consciência moderna. Na verdade, as palavras severas que a Bíblia usa em relação
ao pecado foram banidas de nosso meio. As pessoas não adulteram mais; elas têm
casos. Os executivos não roubam; eles comentem fraude.
1)- HIPOCRISIA CRISTIANIZADA
É fácil condenarmos esses pecados
óbvios (adultério, aborto, homossexualismo, assassinato e etc.) enquanto
ignoramos nossos pecados da fofoca, orgulho, inveja, amargura, luxúria, ou até
a nossa falta de qualidade amáveis que Paulo chama de frutos do Espírito (Gl.
5.22, 23). Parece que nos preocupamos mais com os pecados da sociedade do que
com os pecados dos santos. Na verdade, muitas vezes nos esbaldamos nos pecados
que podemos chamar de “intocáveis” ou até “aceitáveis” sem termos qualquer
noção de pecado. As fofocas indelicadas sobre um irmão ou irmã em Cristo fluem
dos nossos lábios sem que tenhamos mínima concepção de pecado. Guardamos mágoas
de um passado distante sem nenhum esforço de perdoar como Deus nos perdoou.
Lançamos nosso desdém religioso sobre os “pecadores” sem nos lembrar, em
humildade de alma, que, se não fosse pela graça de Deus, estaríamos na mesma
situação.
É fácil livrar a própria cara
dizendo que esses pecados não são tão vergonhosos quanto os cometidos pela
sociedade. Acontece que Deus não nos deu autoridade para estabelecer graus de
pecados. Pelo contrário, ele afirma por meio de Tiago: “Pois qualquer um que
guarda toda a lei, mas tropeça em um só ponto, torna-se culpado de todos”
(2.10). Temos dificuldade de entender esse versículo porque pensamos em termos
de leis individuais com suas respectivas punições. Mas a lei de Deus é
indivisível. A Bíblia, várias vezes, fala da lei de Deus como uma unidade. Quando alguém comete assassinato,
quebra a lei de Deus. Quando um cristão deixa que palavras corruptas (ou seja,
que devastam outra pessoa) saiam da sua boca (v. Ef. 4.29), ele transgride a
lei de Deus.
2)- Jeitinho brasileiro: pecado?!?! Não é possível!!!
As pesquisas revelaram que a
primeira menção sobre o jeito aparece no Brasil para Principiantes, de Peter
Kellemen. Na edição consultada, que data de 1961, o jeito é tido como uma
caricatura da cultura.
O
jeito, em outro livro, Interpretação da Realidade Brasileira de 1973, é
reconhecido como um fenômeno cultural positivo e característico da vivacidade e
flexibilidade do brasileiro.
Em
1982, foi publicado um livro do sacerdote franciscano Bernardino Leers chamado
Jeito brasileiro e Norma Absoluta. Segundo ele, o jeito nada mais é do que a
reação ortopráxica em oposição à ortodoxia dos dogmas da Igreja Católica Romana
criados ao longo da vivência real e comum do povo.
Roberto
da Matta menciona que o fenômeno do jeito pode ser encontrado já no primeiro
documento do Brasil, a carta de Pedro Vaz de Caminha. O autor conclui o
documento com um pedido ao Rei de Portugal para transferir o domínio da Ilha de
São Tomé ao seu genro Jorge de Osório.
O
brasileiro gosta de sentir prazer no que faz. O rotineiro está relacionado ao
trabalho, às obrigações e responsabilidades. O que vale a pena fazer está
ligado ao prazer à realização pessoal. Sendo, a personalidade do brasileiro é
mais atraída pelas diretrizes do coração do que da razão.
Conclui-se que, mesmo sendo cristão, somos
brasileiros e temos de sobreviver na sociedade do jeito, que é afinal, a moeda
corrente para se “navegar na vida”. Por causa da sobrevivência, alguns cristãos
brasileiros têm-se valido diariamente do jeito como “tábua de salvação”.
Como
podemos definir ou resumir o “jeitinho brasileiro”? Talvez uma tentativa fosse
dizer que o “jeitinho” é encontrar uma resposta, uma saída, para uma situação
que em geral não se quer ou não se pode enfrentar; é se livrar de uma situação;
é fazer com que as coisas andem de acordo com os desejos de alguém; é fechar os
olhos para situações que podem prejudicar o indivíduo; é contornar as normas; é
tirar vantagem de uma situação; enfim, é abrir o caminho para que as coisas
aconteçam como se gostaria.
A
publicitária Christina Carvalho Pinto Moy afirmou que o “jeitinho brasileiro” é
uma espécie de síntese de todos os pecados. Ela acrescenta: “o brasileiro é um
pecador incontrolável. Famoso pelo jeitinho com que lida com os temas
delicados, pelo já crônico desrespeito às instituições e tido como ‘corpo
mole’, ele comete diariamente pecados que já se tornaram folclore”.
Embora
a temática da aula seja o desaparecimento da noção de pecado da nossa cultura,
é necessário que se faça justiça, pois o “jeitinho brasileiro” tem também um
lado positivo. Por exemplo na Segunda Guerra Mundial, na campanha dos Apeninos,
quando em pleno inverno ocorreram sucessivas baixas de soldados que tiveram os
pés congelados. Feita a investigação, o serviço médico descobriu que a maior
parte das baixas ocorrera, não entre os brasileiros, mas entre os soldados
norte-americanos que já conheciam a neve. Analisando a causa, logo veio a
resposta: ao avanço do frio, os pracinhas brasileiros cuidaram logo de enrolar
seus pés em jornais, enquanto seus companheiros americanos esperavam orientação
do serviço médico.
Contudo,
há também o lado negativo do jeito. Um exemplo da fuga da aplicação da lei é
quando um motorista comete uma infração no trânsito e a pontuação da sua
habilitação já está no limite permitido. Ele procura alguém da família
habilitado que não tenha acumulado pontuação ou que seja menor que a dele e
solicita que a infração seja atribuída a essa pessoa.
Outro aspecto do jeito é a
sua individualidade. O antropólogo Roberto da Matta afirma que “o grande pecado
do brasileiro é achar que é uma pessoa que deve ser tratada de modo especial.
Essa coisa de querer levar vantagem em tudo é encarada seriamente pela
maioria”. Por exemplo, foram cunhadas no Brasil a expressão “efeito Gerson” ou
“lei de Gerson” que significam levar vantagem em alguma coisa. Essa expressões surgiram a partir de 1976
devido a uma série de doze comerciais do cigarro Vila Rica, veiculada durante
três anos na imprensa fala e escrita. O protagonista da série foi o então
jogador brasileiro de futebol, Gérson Nunes de Oliveira. Numa reportagem (“Em
nome da Lei, Certo”, Veja, 08/05/91, pp. 56-58), Gerson explicou que apenas leu
o script da agência de propaganda. A ideia era vender um cigarro 100 milímetros
por três cruzeiros (moeda da época), enquanto seus concorrentes custavam cinco.
Essa era a vantagem. Embora a frase “Leve vantagem, leve Vila Rica” tenha aparecido
num comercial anterior, foi o Gerson Nunes que passou a carregar esses estigma.
Em resumo, devido à
influência da cultura da época sobre nossas preconcepções, corremos o risco de
demonizar ou repudiar pecados culturalmente condenados, e abraçar outros como
se fossem “legalizados”. O jeito brasileiro talvez seja uma das formas mais
comuns de se pecar hoje no Brasil.
2)- O QUE É PECAR?
O apóstolo João escreveu: “O pecado
é a transgressão da lei” (1 Jo. 3.4).
Todo pecado, até mesmo aquele que achamos insignificante, é rebeldia
contra a lei. Não se trata apenas de descumprimento de um único mandamento; é
total desrespeito pela lei de Deus, é rejeição deliberada ao seu padrão moral
em favor dos nossos próprios desejos.
Os pecados normalmente não resultam
de fracassos em nossas tarefas, mas de um anseio de satisfazermos nossos
desejos. Como disse Tiago: “Ao contrário, cada um é tentado pela sua própria
cobiça, quando esta o atrai e seduz” (Tg. 1.14). Fofocamos ou cobiçamos por
causa do prazer pecaminosos que isso nos dá. Na hora, a sedução daquele prazer
momentâneo é mais forte do que o desejo de agradar a Deus.
Pecado é pecado. Mesmo os que
classifico de “pecados aceitáveis pelos santos” – aqueles que toleramos em
nossa vida – são graves aos olhos de Deus. O orgulho religioso, as atitudes
críticas, os mexericos, a impaciência e a ira, e até mesmo a ansiedade (Fp.
4.6), tudo isso é coisa séria aos olhos de Deus.
Ao enfatizar a necessidade de
buscarmos a justificação unicamente por meio da fé em Cristo, o apóstolo Paulo
cita o Antigo Testamento: “Maldito todo aquele que não permanece na prática de
todas as coisas escritas no livro da lei” (Gl. 3.10). Felizmente, Paulo nos
garante que Cristo “nos resgatou da maldição da lei, tornando-se maldição em
nosso favor” (Gl. 3.13). No entanto, permanece o fato de que os pecados
aparentemente insignificantes que toleramos em nossa vida merecem, sim, a
condenação de Deus.
3)- NATUREZA DO PECADO
O pecado não tem existência
autônoma. O pecado, como já vimos,
não extinguiu completamente a imagem de Deus. Contudo, mudou a direção para a
qual nos movemos. Isto é, o homem usa a capacidade e habilidades de ser à
imagem de Deus para pecar. O pecado é um modo perverso de usar as faculdades
que Deus deu ao homem para que fosse sua imagem. O pecado, portanto, não é
alguma coisa física, mas ética. Ele não foi criado com a criação, mas surgiu
depois da criação; é uma deformação do que existe.
O pecado é sempre em relação
a Deus e sua vontade. Muitas pessoas consideram o que os cristão chamam de pecado uma mera
imperfeição – uma espécie de imperfeição que é um aspecto normal da natureza
humana. De acordo com a Escritura, o pecado é sempre uma transgressão da lei de
Deus. Quando dizemos “lei” queremos dizer a vontade de Deus, embora resumida,
expressada nos Dez Mandamentos.
A “norma da lei gravada no
seu coração” que Paulo diz em Rm. 2.14-16, isto é, das pessoas que jamais viram
uma Bíblia, encontra-se especificamente exposta no Decálogo ou os Dez
Mandamentos, em êxodo 20 e Deuteronômio 5. Essa lei é faz o ser humano conhecer
o seu pecado. As seguintes passagens da Bíblia confirmam isso: “pela lei vem o
pleno conhecimento do pecado” (Rm. 3.20b); “mas eu não teria conhecido o pecado,
senão pelo intermédio da lei; pois não teria eu conhecido a cobiça, se a lei
não dissera: não cobiçarás” (Rm. 7.7b); “se, todavia, fazeis acepção de
pessoas, cometeis pecado, sendo argüidos pela lei como transgressores” (Tg.
2.9); “Todo aquele que pratica o pecado também transgride a lei; porque o
pecado é a transgressão da lei” (I Jo. 3.4).
A fonte do pecado é o que a
Escritura chama de “coração”. Agostinho costumava dizer
que o pecado tem a sua fonte na vontade do homem. O que geralmente chamamos de
“vontade”, é simplesmente outro nome para a pessoa inteira no ato de tomar
decisões. A vontade, ou desejo, jamais é exercida sem a cooperação de outros
aspectos da personalidade, como o intelecto e a emoção. Por detrás do
desejar/querer está a pessoa que deseja/quer. Usando a linguagem da Escritura,
o pecado tem sua fonte no coração. A comprovação bíblica dessa afirmação está
em Pv. 4.23; Jr. 17.9; Mt. 15.19; Lc. 6.45.
O pecado envolve igualmente
culpa e corrupção. Na exposição da aula
passada sobre depravação generalizada e incapacidade espiritual, vimos que a
corrupção do pecado original se faz presente também em nossos pecados atuais. O
pecado atual não apenas se origina da corrupção contida no pecado original, mas
também intensifica essa corrupção. Atos pecaminosos freqüentemente conduzem a
hábitos pecaminosos, e hábitos pecaminosos podem finalmente produzir um tipo e
vida completamente pecaminoso.
O pecado é, na origem, uma
forma de orgulho.Já vimos isso na narrativa da Queda: a serpente despertou o orgulho no
coração de Eva, dizendo: “Porque Deus sabe que no dia em que comerdes se vos
abrirão os olhos e, como Deus, sereis conhecedores do bem e do mal” (Gn. 3.5).
Já mencionamos que o pecado fundamental dos anjos caídos foi o orgulho. O que
aconteceu no primeiro pecado do homem e no primeiro pecado dos anjos ainda
acontece em cada pecado hoje. Fundamentalmente, o pecado significa não
reconhecer nossa total dependência de Deus e desejar autonomia. Em outras
palavras, o pecado é basicamente interesse próprio: querer as coisas ao nosso
modo e não segundo a vontade de Deus.
O pecado geralmente é
dissimulado. Três observações são
necessárias para explicar essa afirmação.
1)- O pecado é sempre cometido por
uma “boa razão”. Eva comeu o fruto proibido porque imaginou que fosse um modo
de tornar-se mais semelhante a Deus. Uma pessoa rouba porque pensa que
necessita mais do dinheiro do que o dono. Visto que somos criaturas
“racionais”, sempre quere ter razões para fazer as coisas. Se as razões que
damos quando pecamos são as razões reais, isto é outra história. Os psicólogos
chamam esse processo de “racionalização” – as pessoas tendem a inventar razões
para fazer o que sabem que não deveriam fazer, mas, apesar disso, querem fazer.
2)- Não conseguimos muitas vezes reconhecer o nosso próprio pecado. Passagens
clássicas da Bíblia como a do salmo de Davi (Sl. 19.12) e de Moisés (Sl. 90.8)
mostram claramente nossa dificuldade de reconhecer nossos próprios erros (Mt.
7.3). 3)- Inclinamo-nos, freqüentemente, a encobrir os nossos pecados. O famoso
episódio de Davi diante do profeta Natã (II Sm. 12.1-15) ilustra bem isso.
CONCLUSÃO
Devemos confessar, com tristeza, o
conceito de pecado entre muitos cristãos conservadores foi praticamente redefinido
para abranger apenas os pecados obviamente nojentos da sociedade. Mas a questão
é que todo pecado – não importa se temos ou não consciência dele – é asqueroso
aos olhos de Deus e merece seu castigo.
Na realidade, o paradoxo é que os
cristãos que mais produzem o fruto do Espírito são aqueles que estão muito mais
cientes desses famosos pecados aceitáveis em suas vidas e que sofrem no íntimo
por causa deles.
Deus não nos abandonou. Ele continua
sendo Pai celeste de cristãos verdadeiros, e continua trabalhando entre nós e
chamando-nos ao arrependimento e renovação. Oremos para que Deus se agrade de
usar esse semestre para esse fim.